Todos comentaram ou escreveram sobre a menina de nove anos estuprada pelo padrasto e que teve uma gravidez gemelar. Detalhes que ela sofria abuso sexual desde os seis anos e que a irmã adolescente era igualmente abusada aumentam nossa comoção e horror.
No Brasil, principalmente no Nordeste, esse crime é bem comum. O número de crianças e adolescentes de ambos os sexos que se prostituem em postos de gasolina é elevado. Existe o agravante de que muitos são estimulados pelos próprios pais. É a face cruel da miséria, da falta de educação, do abandono.
A gravidez precoce e de gêmeos chamou atenção sobre a menina pernambucana mais que sobre milhares de outras infelizes que vivem a mesma tragédia. Porém, o que elevou o tom dos debates em torno dessa história foi a necessidade do aborto e sua efetivação e a reação da Igreja Católica frente à conduta médica. Tornou-se evidente a necessidade de que a Justiça, o Congresso e a sociedade civil discutam o tema com seriedade e consistência, sem hipocrisias, tirando-o do campo do obscurantismo.
O aborto é largamente praticado no Brasil, todos nós sabemos. É difícil alguém que não possua parente ou amiga que tenha recorrido a ele. Refiro o gênero feminino porque de um modo geral as mulheres são deixadas sozinhas no momento de escolher entre um filho indesejado e um aborto. Na nossa sociedade machista, em que é rotineira a violência contra as mulheres, os homens costumam responsabilizar as parceiras pelo fato de engravidarem, se eximindo de qualquer responsabilidade. É como se a gravidez não decorresse de um ato sexual em que dois participam com a mesma vontade. Não me refiro às exceções.
Os médicos que acompanharam a menina agiram de acordo com preceitos científicos e éticos, considerando os danos psicológicos que a menor já sofrera e ainda viria a sofrer. Houve grande mobilização de profissionais das várias especialidades, com respaldo do Conselho Regional de Medicina, das sociedades médicas e de outros conselhos. Mesmo entre as pessoas mais comuns, leigos que desconhecem códigos de leis e de ética e o que seja uma gravidez de risco, prevaleceu o bom senso de que a escolha por uma interrupção da gestação foi o mais certo, o mais justo, o mais humano.
O arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso, possui o direito de defender a vida de um feto, mesmo contrariando leis da justiça e da medicina. Ele se baseia em seculares doutrinas teológicas. Mas, seu discurso falando de pecado e ameaçando com excomunhão é fora do tempo e da realidade. Ele esqueceu de também defender a vida de uma menina de nove anos e expôs a fragilidade da Igreja Católica aos próprios católicos, mostrando o quanto ela ficou antiquada e sem interlocução com as novas gerações.
Alguns membros da equipe médica ameaçada pelo arcebispo se confessam católicos praticantes. Muitos ainda se lembram da Igreja de um outro padre que antecedeu Dom José Cardoso. Refiro-me a Dom Hélder Câmara, um praticante da Teologia da Libertação, afastado do seu rebanho pelo papa João Paulo II. Ele é sempre lembrado com saudade quando Dom José Cardoso pratica os seus excessos de fé, parecidos com os Autos de Fé da Idade Média. Será que o nosso Dom Hélder teria uma outra atitude frente a esse caso?
Todos os que se pronunciam em nome de Jesus deveriam enunciar sentenças justas ou então guardar silêncio. É o que esperamos e desejamos.
Ronaldo Correia de Britto, médico e escritor
Participe: Deixe abaixo o seu comentário, sua opinião.
Nenhum comentário:
Postar um comentário